CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA SPOKEN WORD
Há, no que tange à poesia, uma percepção unânime: poesia não é uma arte que vende bem. Livros de poesia não são encontrados em listas de best-sellers. Esta percepção serve para provar outro fato já bem-sabido por estudiosos: a poesia tradicional é uma arte excludente, e coexiste impassível com esse fato; ao mesmo tempo que não é incomum que a pequena quantidade de vendas das obras do gênero incomode seus autores, a impressão que estes costumam passar é a de satisfação para com esta espécie de sectarismo. Limita-se a versos e estrofes para criar as imagens que objetiva transmitir; limita-se a ritmo e a forma, e comumente, a rimas e a métrica.
Na poesia tradicional, as imagens não são entregues de bom grado ao leitor. Ele deve batalhar por elas, e esta batalha, para as parcelas da população mais segregadas social, cultural e/ou intelectualmente, que não vivem em contato com tal arte, é uma batalha quase perdida.
A poesia oral, por sua vez, está intrinsecamente ligada à hereditariedade da cultura e dos costumes dos povos e rotineiramente tendo utilidade pré-definida — cantos populares, gritos de guerra, cantos rítmicos que acompanha(va)m o trabalho conjunto e repetitivo, comum na revolução industrial. O spoken word poetry surge como sólido representante desse tipo de poesia na atualidade. Derivada do movimento negro e, portanto, do rap e do hip hop, é uma corrente literária alavancada por grupos minoritários como forma de alcançar representatividade para eles mesmos e para sua luta.
Para que se compreenda este tipo de poesia, é importante compreender como exatamente funcionam os slams.
Os slams são encontros que ocorrem comumente em cafés, num formato bastante singular, contrapondo constantemente as ideias de inclusão e competição.
Na grande maioria destes eventos, a participação é acessível a quaisquer candidatos; os candidatos então têm sua performance avaliada numericamente, numa escala de 0 a 10, pelos jurados, comumente num sistema de três rounds em que os poetas que melhor pontuaram continuam avançando. Justamente nos jurados reside a principal antítese entre a inclusão e a competição: é uma competição porque têm a função de classificar numericamente os poemas, de quantificar a poesia; é inclusivo porque são escolhidos aleatoriamente dentre a plateia, sem que seja necessário qualquer domínio do assunto.
A tradição de escolher membros da plateia aleatoriamente para avaliar as obras apresentadas é uma forma de encurtar a distância entre ouvinte e poeta, ou ainda, a distância entre apreciadores e críticos da mesma arte, que permanece, na poesia tradicional, inquebrantável na relação entre poeta e leitor — esta política transmite a ideia de que “qualquer um pode julgar poesia”, que junta à já presente ideia de que “qualquer um pode fazer poesia”, tenta retirar o gênero do ponto pouco acessível em que se encontra como arte.
Deparando-se com máximas como “qualquer um pode fazer [ou julgar] poesia”, uma reação lógica seria relativizá-las. Sabendo-se que a spoken word, como explicitado pelo próprio nome, trata-se de uma forma falada de poesia, é intuitiva a conclusão de que a corrente não incluiria, por exemplo, surdos e deficientes auditivos. Conquanto, as libras tornam-se cada vez mais intrinsecamente presentes nos slams; há alguns destes que contam com intérpretes de libras, autores que declamam poemas híbridos entre oralidade e libras e até mesmo slams destinados ao público surdo, onde a declamação propriamente dita é feita em libras.
O escritor de spoken poetry Phil Kaye (2014), na palestra Poetry in maximun security prison, exemplifica com solidez o caráter inclusivo da corrente ao contar sobre suas experiências como voluntário num workshop de poesia numa prisão de segurança máxima dos Estados Unidos, em 2006. O poeta fala sobre o sentimento de relacionar-se, através da poesia, com pessoas numa situação estigmatizada e completamente diferente da sua, e descreve o passo a passo do processo de aceitação, ao longo do semestre pelo qual se alongou o workshop, da poesia por parte dos detentos, comentando sobre alguns dos motivos dos envolvidos para ali estarem (um deles, por exemplo, gostava de rap, e por isso resolveu dar uma chance à poesia).
O artista reflete a respeito de como os membros do projeto não escreviam poesia por reconhecimento ou esperando qualquer retorno, mas apenas por escrever (ou ainda, segundo um dos detentos, pela maravilha proporcionada pelo papel por permitir que mesmo num lugar como a prisão seja possível olhar para a expressão dos próprios pensamentos), e como o workshop foi diretamente aditivo para sua própria produção artística, declarando ainda que “[...] Some of the most talented artists I know rarely leave a prison cell”. O caráter democrático e inclusivo ilustram-se pela declaração do autor: “For that moment, we are seventeen men sharing poetry, not defined by our age or our past, but the four walls around us”.
É isso o que as pessoas buscam nos slams: fugir através da arte da indumentária — nos âmbitos social e subjetivo — que vestem inexoravelmente. É isso o que os slams anseiam por lhes proporcionar: a indumentária de apenas mais alguém dividindo poesia com outros que compartilham deste interesse.
É compreensível que a spoken word busque ser democrática e inclusiva ao alcançar grupos marginalizados e estigmatizados e dar lugar de fala para suas vozes e suas causas, ao mesmo tempo que as portas são mantidas abertas para grupos e temas que não se encaixem nesta situação em particular. Ainda assim, estas medidas sozinhas não seriam o suficiente para alcançar a tão almejada condição de local acessível para todos — de nada adiantaria alcançar estes grupos e temas com o intuito de enquadrá-los nos moldes de um movimento como, por exemplo, o Parnasianismo.
A poesia, no entanto, permite-se ser acessível por não se limitar a uma única escola ou movimento literário, mas desdobrar-se em numerosas variações técnicas, estilísticas, temáticas etc. É, pois, aí que reside a maior parte do caráter excludente da poesia: na frequentemente exacerbada preocupação com a forma.
Essa preocupação é maioritariamente ausente nos Slams, de forma tão intensa que muitos poemas se parecem com outros estilos artísticos da oralidade, como o teatro ou o stand-up. Os moldes acadêmicos, no entanto, são rechaçados desde as mais primordiais correntes modernistas, já no início do século XX.
O spoken word, como se exemplifica mais uma vez aqui, não é a pioneira no que tange suas características mais marcantes, como a liberdade formal. Já houve antes dela formas de produção literária oral que tinham utilidade clara, como o modernismo; que alcançavam grupos minoritários, como a negritude; que deixavam de lado as normatizações acadêmicas em prol de maior liberdade, como o surrealismo.
O que essa corrente tem de tão particular, conquanto, é a forma quase utópica através da qual visa a aprofundar-se em todos esses pontos.
Antes de tudo, deve-se ter em mente que a spoken word não é um estilo literário específico, mas sim uma corrente cujas características comuns estão mais presentes na ideologia do que na forma e no estilo propriamente ditos. Assim sendo, não se pode atribuir características inerentes à poesia dessa corrente, mas sim tendências. Uma das mais fortes destas tendências é a falta de rimas, que se justifica como uma forma de tornar mais eficiente o desenvolvimento do poema, uma vez que a duração da performance é um fator chave no estilo. Os poemas deste estilo costumam prender-se à poesia tradicional apenas através do ritmo e da grande quantidade de metáforas.
Texto
Uma poética entre a tradição e a contemporaneidade —spoken word
Luís Otávio Araujo
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