
Poeta Maior, Agostinho
Neto emergiu como escritor na década de 50, durante o período político-cultural
Angolano, conhecido como “Vamos Descobrir Angola”. Ao longo de toda a sua
vida de homem público, a escrita revelou-se uma actividade fundamental para o
sucesso político.
Participou, como
colaborador, em várias publicações periódicas de Angola, de Portugal e do
Brasil. Seus textos foram publicados em diversos jornais e revistas, como:
Mensagem, Cultura, Itinerário e Notícias de
Bloqueio.
Suas primeiras colaborações na
escrita datam do período compreendido entre 1942 e 1944 e foram publicadas no
jornal O Estandarte. Além das obras mencionadas, encontram-se também
publicados alguns dos seus discursos e reflexões sobre a cultura angolana, tais
como: Introdução a um colóquio sobre a poesia angolana, de 1959;
Sobre a União dos Escritores
Angolanos de 1975; Sobre a Literatura de 1977; Sobre a Cultura Nacional Sobre as Artes
Plásticas e Sobre a Associação dos Escritores Afro-Asiáticos,
de 1979; Ainda o Meu Sonho...e Discursos sobre a Cultura
Nacional, de 1985.
Agostinho Neto é considerado
um dos grandes autores de expressão portuguesa no mundo.
O poeta maior como é chamado
é comparado muitas vezes a Léopold Sédar Senghor, senegalês de expressão
francesa e um dos fundadores da Négritude - movimento que, nos anos
30 do século passado, lutava em favor da restituição dos valores e da dignidade
negra. Agostinho Neto ultrapassou, sem dúvida, o que se podia esperar de um
homem de grande cultura. Utilizava a sua inteligência e conhecimento para
reagir contra a opressão, na denúncia da injusta situação colonial. Com
implacável vigor, o poeta também buscou construir um futuro de liberdade e
igualdade para todos. Foram-lhe atribuídos diversos prémios políticos e
literários, dentre os quais: o Prémio LOTUS, em 1970, e o Prémio
Nacional de Literatura, em 1975. Sagrada Esperança, de 1974, é a sua
obra mais publicada. Foi traduzida para diversas línguas e serve de base para
muitos estudos, sobretudo na área das Ciências Sociais e Humanas.
António Agostinho Neto foi
um médico angolano, formado nas Universidades de Coimbra e de Lisboa, que em
1975 se tornou o primeiro presidente de Angola até 1979 como membro do
Movimento Popular de Libertação de Angola. Nasceu a 17 Setembro 1922 (Kaxikane,
Icolo e Bengo, Angola)
Morreu em 10 Setembro 1979
(Moscovo, Rússia)
Obra
Poética: Cronologia e Publicações de Agostinho Neto
- 1952 – Náusea. In:
Revista Mensagem.
- 1957 – Quatro Poemas
de Agostinho Neto.
- 1961 – Poemas Lisboa:
Casa dos Estudantes do Império.
- 1963 – Com os
olhos secos.
- 1963 – Con occhi
asciutti.
- 1974 – Sagrada
Esperança.
- 1982 – A Renúncia Impossível
– negação. In: A renúncia impossível – poemas inéditos. (edição póstuma).
- 1998 – Agostinho Neto:
Poesia.
- In: Colecção Kiamba (edição póstuma).
O choro de África
O choro durante séculosnos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas
românticas nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho de África
Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das viol6enias
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda parte e de
todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África
e mesmo na morte do sangue ao contacto com o chão
mesmo no florir armoatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na segura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens
O choro de séculos
inventado na servidão
em histórias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas
O choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola ao círculo de
ferro
da desonesta força
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida
fechada em estreitos cérebros da máquinas de contra
na violência
na violência
na violência
O choro de África é um sintoma
Nós teremos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas
- por nós!
E amor
e os olhos secos.
Mãos esculturais
Além deste olhar vencido
cheio dos mares negreiros
fatigado
e das cadeias aterradoras que envolvem lares além do silhuetar mágico das figuras
nocturnas
após cansaços em outros continentes dentro de África
Além desta África
de mosquitos
e feitiços sentinelas
de almas negras mistério orlado de sorrisos brancos
adentro das caridades que exploram e das medicinas
que matam
Além África dos atrasos seculares
em corações tristes
Eu vejo
as mãos esculturais
dum povo eternizado nos mitos
inventados nas terras áridas da dominação
as mãos esculturais dum povo que contrói
sob o peso do que fabrica para se destruir
Eu vejo além África
amor brotando virgem em cada boca
em lianas invencíveis da vida espontânea
e as mãos esculturais entre si ligadas
contra as catadupas demolidoras do antigo
Além deste cansaço em outros continentes
a África viva
sinto-a nas mãos esculturais dos fortes que são povo
e rosas e pão
e futuro.
Luta
Violência
vozes de aço ao sol
incendeiam a paisagem já quente
E os sonhos
se desfazem
contra uma muralha de baionetas
Nova onda se levanta
e os anseios se desfazem
sobre os corpos insepulcos
E nova onda se levanta para a luta
e ainda outra e outra
até que da violência
apenas reste o nosso perdão.
Lá no horizonte
Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braços erguidos No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas
Poesia africana
Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha dos olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa
No céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas
Poesia africana
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone
Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
Kinaxixi
Gostava de estar sentado
num banco do kinaxixi
às seis horas duma tarde muito quente
e ficar...
Alguém viria
talvez sentar-se
sentar-se ao meu lado
E veria as faces negras da gente
a subir a calçada
vagarosamente
exprimindo aus6encia no kimbundu mestiço
das conversas
Veria os passos fatigados
dos servos de pais também servos
buscando aqui amor ali glória
além uma embriagues em cada álcool
Nem felicidade nem ódio
Depois do sol posto
acenderiam as luzes
e eu
iria sem rumo
a pensar que a nossa vida é simples afinal
demasiado simples
para quem está cansado e precisa de marchar.
Dois anos de Distância
Saudades - dizes na carta de ontem
quando nos veremos breve ou tarde?
Diz-me amor!
Nos silêncios
estão as conversas que não tivemos
os beijos não trocados
e as palavras que não dissemos
nas cartas censuradas
Contra o dilema de hoje
viver submissão ou perseguindo
são os nossos dias de sacrifício
e audácia
pelo direito
de viver pensando viver agindo
livremente humanamente
Entre o sonho e o desejo
quando nos veremos
tarde ou cedo?
Diz-me amor!
Cresce com mais justiça ainda
a ânsia de sermos
com os nossos povos
hoje sempre e cada vez mais
livres livres livres
Criar
Criar criar
criar no espírito criar no músculo criar no nervo
criar no homem criar na massa
criar criar com os olhos secos
criar criar
sobre a profanização da floresta
sobre a fortaleza impúdica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar com os olhos secos
Criar criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos
criar criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianças
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos.
Criar criar
criar liberdade nas estradas escravas
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas
simuladas
criar
criar amor com os olhos secos.
Confiança
O oceano separou-me de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço condensando o tempo
Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso
Enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor
e as mãos construiam mundos maravilhosos
John foi linchado
o irmão chicoteado nas costas nuas
a mulher amordaçada
e o filho continou ignorante
E do drama intenso
duma vida imensa e útil
resultou certeza
As minhas mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
mereço o meu pedaço de pão.
Com os olhos secos
Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
atravós do corpo atravós do espírito
sobre os corpos inanimes dos mortos sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos
Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda
Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdámos dos massacres e mentiras
Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE.
Civilização Ocidental
Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa
Os farrapos completam
a paisagem íntima
O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante
Depois as doze horas de trabalho
escravo
Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra
A velhice vem cedo
Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome
Antigamente era
Antigamente era a pele escura-noite do mundo
Antigamente era o canto rindo lamentos
Antigamente era o espírito simples e bom
Outrora tudo era tristeza
Antigamente era tudo sonho de criança
A pele o espírito o canto o choro
eram como a papaia refrescante
para aquele viajante
cujo nome vem nos livros para meninos
Mas dei um passo
ergui os olhos e soltei um grito
que foi ecoar nas mais distantes terras do mundo
Harlem
Pekim
Barcelona
Paris
Nas florestas escondidas do Novo Mundo
E a pele
o espírito
o canto
o choro
brilham como gumes prateados
Crescem
belos e irresistíveis
como o mais belo sol do mais belo dia da Vida.
Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.
Dos que vieram
e conosco se aliaram
muitos traziam sobras no olhar
intenções estranhas.
Para alguns deles a razão da luta
era só ódio: um ódio antigo
centrado e surdo
como uma lança.
Para alguns outros era uma bolsa
bolsa vazia (queriam enchê-la)
queriam enchê-la com coisas sujas
inconfessáveis.
Outros viemos.
Lutar pra nós é ver aquilo
que o Povo quer
realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino -
é uma ponte entre a descrença
e a certeza do mundo novo.
Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam - vamos lutar.
Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
ou pra ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?
Na mesma barca nos encontramos
Quem há-de ser o timoneiro?
Ah as tramas que eles teceram!
Ah as lutas que aí travamos!
Mantivemo-nos firmes: no povo
buscáramos a força
e a razão
Inexoravelmente
como uma onda que ninguém trava
vencemos.
O Povo tomou a direção da barca.
Mas a lição lá está, foi aprendida:
Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós
Havemos de Voltar
Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar
Às nossas terras
vermelhas do café
brancas do algodão
verdes dos milherais
havemos de voltar
Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar
Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar
À frescura da mulembá
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar
À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar
Havemos de voltar
à Angola libertada
Angola independente.
Sim em Qualquer Poema
Apetece-me escrever um poema.
Um poema fechado dentro de si
para ser compreendido
apenas
pelos passarinhos que chilreiam lá fora
sobre as três árvores
da minha única paisagem;
para ser entendido
pela canção da seiva
circulante no verde das ervas
do caminho áspero da encosta;
e pelo brilho do Sol
e pelo caráter íntegro dos homens.
Um poema que não sejam letras
mas sangue vivo
em artérias pulsáteis dum universo matemático
e sejam astros cintilantes
para calmas noites
de invernos chuvosos e frios
e seja lume para acolher gazelas
que pastam inseguras
nos acolhedores campos da imensa vida;
amizade para corações odientos
motor impelindo o impossível
para a realidade das horas;
cântico harmonioso para formosura dos homens.
Um poema
(ah! quem comparou a África a uma interrogação cujo ponto é Madagascar?)
Um poema solução
resolvendo a curva interrogativa da imagem
em linha reta da afirmação;
e a beleza das florestas virgens,
a precisão da engrenagem da existênicia
o som fantástico do trovejar sobre pedras,
os cataclismos fluviais
pendentes sobre as frágeis canoas do rio Zaire,
o claro arrebol dos olhos dos homens.
Um poema traçado sobre aço
escrito com as flores da terra
e com os braços esguios da podridão;
esculpido no amor
que exala a esperança daquele meu amigo
a esta hora com a tanga ensopada
no suor do seu dorso;
com as canções adocicadas do quissange ao luar;
e as gargalhadas infantis para a minha amada;
com o calor simpático
do corpo sangrento dos homens.
Um poema fechado
- longo e imperceptível
em que amor e ódio entrelaçados
sejam a síntese da discordância
para ser cantado em todas as línguas
guiado pelo som da marimba e do piano;
ritmo de batuque enxertado sobre as valsas
de outra mocidade;
harmonia de xinguilamentos
sobre o bárbaro matraquear da máquina de escrever,
grito aflito no vácuo
debatendo-se para encontrar vibração de matéria
e a aspiração dos homens.
Mas não escreverei o poema
Em que subterrâneos circularia
o ar irrespirável da violência?
Nas cavernas dos teus pulmões
ó caften das vielas sórdidas
do conformismo?
Ou na avidez dos quilômetros intestinos
dos chacais?
Ou nas cavidades prostituídas do coração
infame do esclavagismo?
Ou nas goelas
da desonestidade inconsciente?
Não escreverei o poema.
Escreverei cartas à minha amada
preencherei os espaços claros dos impressos
com letra impecável
e nos intervalos
cantarei canções afro-brasileiras.
Sonharei.
Sonharei com os olhos do amor
encarnados nas tuas maravilhosas mãos
de suavidade e ternura.
Sonharei com aqueles dias de que falavas
quando te referiste à Primavera.
Sonharei contigo.
E com o prazer de beber gotas de orvalho
na relva
deitado ao teu lado
ao Sol, - uma praia furiosa lá ao longe.
E ficará dentro de mim
a amargura de não escrever o poema.
Nele há tantas amarguras!
Não escreverei o poema.
Direi simplesmente
que o colosso de certeza na humanidade do Universo
é inapagável
como o brilho das estrelas
como o amor dos teus olhos
como a força da harmonia dos braços
como a esperança nos corações dos homens.
Inapagável
como a sensual beleza
da agilidade das feras sobre o campo
e o terror transmitido dos abismos.
Direi simplesmente
Sim!
Sempre sim
à honestidade dos homens
ao viço juvenil da sinfonia das árvores
ao odor inesquecível da natureza
que apaga os possíveis cheiros amargos.
Sim!
à interrogação mágica de Talamugongo
do Cunene ao Maiombe;
ao sonoro cântico do ritmo subterrâneo
e dos chamamentos telúricos;
aos tambores
apelando para o fio da ancestralidade
esbatido além;
ao ponto interrogativo de Madagascar.
Sim!
às solicitações místicas à musculatura dos membros
ao quente das fogueiras endeusadas
na lenha das sanzalas;
às expressões magníficas das faces
esculpidas no alegre sofrimento das quitandeiras
e no ritmo febril das sensações tropicais;
à identidade
com a filosofia do imbondeiro
ou com a condição dos homens,
ali onde o capim os afoga em confusão.
Sim!
à África terra, à África-humana.
Direi sim
em qualquer poema.
E esperamos que a chuva pare
e deixe de molhar os chilreantes passarinhos
sobre as três árvores da minha única paisagem
e o desejo de escrever um poema.
Isso passa.
Contratados
Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rápidos
Sobre o dorso
levam pesadas cargas
Vão
olhares longínquos
corações medrosos
braços fortes
sorrisos profundos como águas profundas
Largos meses os separam dos seus
e vão cheios de saudades
e de receio
mas cantam
Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam
Cheios de injustiças
calados no imo das suas almas
e cantam
Com gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam
Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes
Ah!
eles cantam...
Vida e obra Dr Agostinho Neto, bem feita. Poeta Maior.
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