SPOKEN WORD
Em se tratando de poesia, é fato que se configura uma arte de numerosas e expressivas nuances e particularidades, cujas ferramentas de expressão e escopos sociais em que se edifica são sempre cambiantes em consonância com as diversas correntes literárias.
A spoken word poetry é uma corrente literária da poesia de visibilidade crescente, especialmente por grupos marginalizados nos países falantes de língua inglesa, que se comparada à poesia tradicional, entendida aqui por uma certa ideia hegemônica de poesia, ou seja, baseada na métrica, no ritmo, nas rimas etc., bem como a uma poesia mais institucionalizada, tece uma emaranhada teia de similaridades e excentricidades, formal, social e tematicamente.
“Poesia; Forma; Oralidade; Performance; Interpretação”
A MAIÊUTICA SOCIAL DA SPOKEN WORD POETRY
No decorrer deste artigo serão feitas considerações acerca não apenas do que concerne às características da spoken word no contexto literário, mas também de seu escopo contextual sociocultural, é vital que se saiba como, por quê e em qual contexto se deu seu surgimento. Desta forma, a primeira problemática com a qual tão logo se depara diz respeito à definição do termo. Aleksandra Szymil (2006) denuncia prontamente uma ambiguidade nesta nomenclatura, o que faz com que a aponte como “difícil de traduzir”: ainda segundo a autora, spoken word poetry pode ser compreendido como um termo genérico para poesia oral, englobando assim suas mais diversas vertentes, como o hip hop (um dos mais sólidos alicerces da definição de spoken poetry que será aqui abordada), ou como um sinônimo de slam poetry, um tipo específico de poesia oral que se dá sem acompanhamento musical, em formato de apresentação para uma audiência, ou, pelas palavras de Harry Baker (2014),
“it was a format come up with in America 30 years ago as a way of tricking people into going to poetry events by putting an exciting word like ‘slam’ on the end.”
Este tipo de poesia é marcado por um eloquente desprendimento dos padrões acadêmicos, e é, em resposta, pouco abordado. É justamente esta a definição que nos interessa agora.
Este desprendimento é profundamente engendrado por uma espécie de missão pela democratização da poesia, bandeira hasteada com fervor por esta corrente, que dá voz a grupos marginalizados e, ao fazê-lo, permite que falem sobre as causas e efeitos desta marginalização por eles sofrida através de uma arte (a poesia) convencionalmente apontada como excludente — quando não no âmbito social, ao menos no âmbito intelectual —, sobre a qual ainda paira o estigma de género literário restrito a grupos e a círculos intelectuais diminutos. Não é, no entanto, por seu carácter mais acessível que este tipo de poesia pode ser entendido como simplório.
A spoken word nasce das vozes das minorias, mas não se limita a elas; não visa a ser um refúgio para aqueles que não o encontram normalmente na sociedade, mas sim a moldar-se como um campo de luta idílica onde principalmente, mas não somente estas vozes, façam-se ouvidas.
Os primeiro registros deste formato de slams datam de meados dos anos 1980, realizados em cafés dos Estados Unidos e rapidamente espalhando-se pelas metrópoles do país. Este fenômeno literário era, ainda na época, uma forma de luta do movimento negro por meio da arte, e suas raízes ligam-se directamente às do movimento negro como um todo, até o movimento de Renascimento do Harlem, na década de 1920, passando pelos ainda globalmente influentes rap e hip hop. Ou, em se pensando numa ligação mais longeva, é possível recuperar as raízes da literatura africana, onde a oralidade sempre teve força hercúlea, seja entoando cantos de guerra e poesias épicas, seja no tão presente teatro. Essa literatura negro-africana carrega consigo a secular luta de um povo — facilmente ilustrável pelos países da África francófona, cuja literatura em língua francesa nasceu justamente como arma contra a repressão do modelo metrópole-colônia e o racismo —, que recai agora sobre a spoken word poetry, perpetuando a voz desse povo como um brado de resistência.
Na década de 1990, surgem os campeonatos de slam, fortalecendo o ar competitivo desta corrente literária. É a partir deste ponto que o movimento passa a abranger não só os negros, mas também outros grupos marginalizados, como latinos e comunidade LGBTQ+. Posteriormente, vieram a ser também abarcados poetas de além destes grupos minoritários. A crítica social e o grito dos reprimidos não perderam sua força nos slams, mas sim sua hegemonia: os temas hoje pendulam para além da revolta contra a sociedade, passando pelas agonias subjetivas do homem até temas com alta carga humorística. É comum nos Slams, como Zumthor (1997) aponta ser na poesia oral como um todo, esta moldagem do subjectivo para que alcance de forma mais ou menos universal os ouvintes.
A spoken word poetry demorou a evoluir em consonância com a tecnologia. Visto que sua arte era, inicialmente, direcionada a um público bastante específico, o movimento manteve-se limitado aos interiores dos cafés até o início de sua real expansão. No entanto, com a internet, essa expansão foi rápida e direta, e hoje tem como principal forma de difusão as mídias online, em forma de vídeos, como ocorre no Youtube. Existem nessa plataforma grandes canais desse tipo de poesia, que englobam um volumoso montante de obras dos mais diversos temas e autores dos mais diversos arquétipos, como o Button Poetry.
O canal advém de um website e blog de mesmo nome, fundado em 2011 por Sam Cook e Sierra DeMulder (ambos poetas deste estilo), e expandiu-se para outras plataformas, como o Tumblr e o próprio Youtube ainda em 2012. Desde então, o projeto cresceu com a gravação de inúmeros slams e a venda de merchandises e livros, em mídia física e digital. Atualmente, o Button Poetry conta com mais de um milhão de inscritos e mais de 1.500 vídeos no Youtube.
É por amalgamar todas essas particularidades, em âmbito social, performático, literário e afins, e por fazê-lo distante do universo acadêmico, que muito há o que se reflectir acerca desse tipo de poesia — por que se enquadra como poesia e não como qualquer outro tipo de produção literária oral? Até onde chegam os limites da spoken word poetry e quando uma obra poética passa a ou deixa de sê-lo? Como relaciona-se este carácter democrático e inclusivo com uma arte tão excludente quanto a poesia e a competitividade que perpassa, de maneira mais ou menos sutil, os slams? Em que medida esta corrente é acessível e quão sólido e/ou profundo é seu anti-academicismo? De que maneira suas origens como um meio para lutas sociais, advindas do movimento negro, influenciam os outros grupos que o movimento passou a envolver e como esta maior abrangência afetou seu caráter irreverente e seu poder como forma de militância?
É acerca de questões como essas que este artigo se propõe a refletir, utilizando-se da poesia em suas manifestações mais tradicionais — de natureza escrita, produzida para leitura solitária — como bússola para que se possa melhor situar o gênero da spoken word poetry.
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